Gatinha branca


Essa noite sonhei que eu era uma gatinha branca como uma vela, pequenina, delicada e de olhos azuis como o céu, igualzinha a que apareceu em meu quintal semanas atrás.  O meu caminhar era sutil e cheio de graça e meu perfume atraente demais para passar despercebido. Eu encontrei meu lar em um lugar puro, com uma família sincera e que me amava, uma raridade em tempos em que se pode ver, facilmente, animais sendo maltratados e humilhados, abandonados pelas ruas, morrendo de fome e sede. Um lar! Algo inimaginável para uma gata vira-latas como efetivamente eu era. Talvez existisse algo agradável demais em minha presença, em meu ser, talvez fosse a jovialidade, o brincar com a bola de lã e com a areia, correr atrás da borboleta ou só por ser engraçadinha mesmo, por andar balançando meu rabo com charme e decisão. Mas eu não sabia exatamente o que era.
Eu cheguei naquela casa quando nada mais no mundo trazia esperança de encontrar um abrigo e lá encontrei aconchego, uma cama macia e quente, ração da melhor qualidade e leite à vontade, além do carinho impagável. Mas eu sabia da minha condição de gata, “nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres” e eu tinha necessidade de ir longe e alto, por cima dos muros e das lajes, pelas ruas, nos quintais alheios, no mundo, noite a fora. No equilíbrio de minhas patas eu saía para viver coisas novas, aventuras e a minha sonhada liberdade. Era tão divertido exercer minha atração, meu renovado ser, meu charme e meu mistério, porque nós gatos somos tão enigmáticos e tão individualistas que só mesmo um grande motivo para sermos amados.
Uma gata bem tratada, de patas e pêlo macio, o corpo aquecido... e em minha essência eu ainda queria mais. Queria sair a miar por aí, fazendo com que o meu canto atraísse a maior quantidade de gatos da redondeza para cantarem comigo e fazerem de suas vidas muito mais do que simplesmente ter um lar para onde voltar todo dia. Eu queria usar minhas unhas e a minha selvageria para lutar por alguma causa, porque essas eram as raízes que me ligavam ao meu verdadeiro eu, aquele em que eu não precisava usar coleira nem lacinhos, aquele que todo mundo finge que não existe, o que a gente se acostuma a esconder a vida inteira por uma vida menos ordinária. Eu queria ser uma gata sem rótulos, sem etiqueta, sem pedigree. Uma simples felina pela vida, do jeito que deveria ser, indomável. Um bichano.



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