Carta de uma técnica em mecânica

A carta abaixo foi escrita em 13 de agosto de 2001, em um dos melhores momentos do início da minha vida profissional, e encontrada no meio das coisas da minha mãe, que costumava guardar secretamente quase todas as coisas que eu escrevia e que, despercebidamente, ficavam ao seu alcance. Esse é o registro de um instante empolgante e grandioso para mim e foi transcrito sem correções gramaticais. É curioso ler após dez anos e perceber que tanta coisa mudou e ao mesmo tempo nada mudou...

Na verdade eu adoro estar aqui porque eu sei que sou realmente corajosa e sei que tenho tudo para conseguir conquistar meus objetivos. Sinto uma certa insegurança, claro, mas sinto-me, acima de tudo, capaz e detentora de uma oportunidade única. Eu sou a única mulher mecânica na fábrica e fui a única na escola, isso me deixa orgulhosa demais para desistir, por isso nunca pensei em desistir, porque agora começo a sentir-me a pessoa que eu sempre fui, com a diferença que agora tenho conhecimentos técnicos e posso ser reconhecida. Sinto-me admirada, sinto o olhar das pessoas em mim e isso me deixa feliz, esse é apenas um dos motivos que me faz gostar de mecânica. Eu amo aquela roda dentada que representa a termomecânica, é um prazer poder fazer alguma coisa por esta empresa que deu vida àquela escola e à minha profissão, ao início de minha vida. A TM me deu essa oportunidade de crescimento e eu devo muito às pessoas que, de uma forma ou de outra, acreditaram em mim, mesmo não estando diante das melhores notas da classe. Por isso eu tenho o dever e o prazer de fazer por merecer tudo aquilo que essas pessoas apostaram em mim, no meu potencial, eu tenho uma vida inteira pela frente e pode até ser que amanhã eu esteja superdesanimada; é muito difícil ter que dormir cedo e acordar cedo, principalmente para mim que sempre fui completamente indisciplinada nesse aspecto; detesto comer pão com manteiga, principalmente estando com as mãos sujas de graxa, mas eu tenho comer, e principalmente porque sinto fome; também é difícil sair de casa de madrugada, quando o sol nem nasceu, e voltar pra casa à noitinha, quando o sol já se pôs, tem dias que eu nem vejo a luz do sol; confesso que por mais que pareça esquisito, foi difícil pra mim receber o primeiro pagamento, senti o quanto eu desejei aquilo, pensando que me sentiria independente e diferente de quando eu tinha que pedir dinheiro ao meu pai, mas foi uma sensação diferente, um sentimento de escravidão, uma percepção de que jamais seremos livres de verdade se vivermos nesse infinito jogo de ambições...Enfrentar todas essas coisas requer um motivo muito forte, preciso, precioso. Eu me sinto completa, tudo isso preenche o meu dia e dignifica a mulher que existe em mim, cansada de ver milhares de mulheres indefesas, injustiçadas e sem vontade de vencer ou sem esperança de ter uma vida melhor. Sempre tão submissas, muitas vezes erroneamente mais machistas do que os próprios homens, mergulhadas em uma ignorância absurda, as mulheres são seres inegavelmente delicados, mas incomparavelmente fortes. Se amanhã não for nada disso, espero encontrar um motivo mais digno, mas a cada dia eu me sinto mais certa e a cada instante eu tenho mais vontade de seguir em frente. Há dias que parecem não ter fim e eu durmo no ônibus apenas por alguns segundos, desejando que a viagem seja longa, quando acabamos de chegar para pegar outro ônibus...de nada adiantaria tanta coisa se não houvesse amor, só assim eu sou feliz de verdade, assim posso ter minha dignidade e tudo isso não é só por mim. É um prazer em tão pouco tempo, já poder ajudar meu pai com as despesas da casa, é maravilhoso ter com quem compartilhar minha vida, minhas inseguranças e medos, os meus sonhos mais profundos. Não posso achar que somente essas palavras poderiam ser suficientes para agradecer a todos aqueles que fizeram a minha vida ser tão melhor, pessoas que me fizeram crer que eu seria capaz de melhorar muitas coisas no mundo dando o melhor que há em mim, mesmo diante de anos que passam como o vento e de tantos outros momentos e pessoas que estão por vir, é magnífico o quanto é impossível esquecer esses momentos que vivo agora, impossível esquecer essas pessoas que me ensinam a ser uma profissional e, principalmente, uma pessoa melhor. Eu vou fazer por eles porque eles fizeram por mim.

Eu e Wilson, primeiro chefe da minha vida, no laboratório da fábrica I da Termomecanica, em 2001

Comentários

  1. Cidiane,
    Muito interessante é essa dialética entre ser grata, sentir quase uma obrigação em retribuir o que as pessoas "fizeram" por você e sua insatisfação em relação ao pagamento, ao não ver a luz do sol... É incrível e demasiadamente humano. A pergunta quase sai: Será que vale a pena receber meu salário e não ver a luz do sol?

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  2. Você captou, como sempre, João, o espírito da coisa...

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