Diário de um sonho
A gente se mudou para uma casa
longe de tudo, em um lugar quase deserto, onde não tinha nada além de mato,
vacas e morros. Durante o dia, era um lugar que transmitia tranqüilidade e paz,
por causa do silêncio e a distância dos grandes centros urbanos, o contato com o
verde estreitava as nossas relações com a natureza, pois ficávamos horas
ouvindo o vento passar pelas árvores e os pássaros cantarem. Era como se a
nossa vida começasse ali, independentemente do tempo que estávamos juntos, como
em um desses filmes, em que você vê a esperança brotando em um casal que se
muda para uma nova casa, para começar uma vida nova, uma família. Eu me sentia
longe do mundo, de uma forma muito boa, me sentia feliz, apesar da mistura
entre medo e felicidade de saber que tínhamos um ao outro e nada mais.
À noite a visão era linda, dava
pra ver a cidade lá embaixo, toda cheia de luzes, cheia de gente que mais
pareciam formigas em um grande formigueiro iluminado. Eu sabia que tudo aquilo
tinha dois lados, pois a tranqüilidade de estarmos longe de tudo embutia também
o fato de que, caso precisássemos de ajuda para qualquer coisa, por mais
simples que fosse, não teríamos ninguém a quem recorrer.
Um dia estávamos curtindo o nosso
quintal dos fundos e, além dos limites do muro do condomínio, escutamos algo
muito estranho e difícil de entender, parecendo gritos de vozes masculinas, mas
não eram gritos de pedido de socorro ou algo assim, pareciam mais de imposição.
Subimos em um pedaço de terra e restos de construção que os pedreiros haviam
deixado de lado para depois recolherem, e resolvemos sanar a nossa curiosidade,
como se não soubéssemos daquele velho clichê que diz que “a curiosidade matou o
gato”, e o que vimos foi um monte de gente em fila, pelo que percebemos apenas
homens, unoformizados, sendo levados para algum outro lugar que desconhecíamos,
por meio de guardas que impunham armas e batiam naqueles trabalhadores,
obrigando-os a um trabalho aparentemente escravo e desumano. Olhamos um para o
outro tentando entender ou acreditar no que vimos e, já morrendo de medo, eu
puxei sua camisa e disse “saia daí, abaixe-se para que não te vejam, vem...”,
pois sabia que por ser muito mais alto do que eu, era perigoso que o vissem
ali. Mal terminei de falar e ele caiu ladeira abaixo, fazendo um barulho que
era muito difícil de esconder ou disfarçar, e foi então que o inesperado
aconteceu. Um dos guardas puxou-o pelo muro e carregou-o para além dos limites
de nossa casa, transformando-o em um de seus trabalhadores braçais
imediatamente. Para mim, aquilo parecia um grande campo de concentração e
quando resolvi correr para pedir ajuda, percebi que nenhuma das outras casas do
condomínio estavam ocupadas, éramos, portanto, os únicos moradores dali há não
sei quanto tempo e eu nunca tinha me tocado do silêncio absoluto e a falta de
contato com os vizinhos. Minha aflição foi imensa e comecei a fechar todas as
portas, cortinas e janelas, tentando me esconder dentro da casa, chorando de
tristeza e medo por estar sozinha diante de tamanha perseguição. Não conseguia
entender como aquilo estava acontecendo, não estávamos na Alemanha da década de
40 e não sabia que haviam campos de concentração no Brasil do século 21. Como
eles haviam conseguido esconder aquilo? E como haviam permitido que se
construísse um condomínio residencial bem do lado?
Quando fui me esconder embaixo da
mesa da cozinha, percebi que existia, embaixo do tapete, uma portinha, no
próprio piso de madeira, e então resolvi abri-la pensando em me esconder lá
embaixo, antes que me encontrassem. Mas logo lamentei “poderia ter limpado a
casa pelo menos uma vez desde que nos mudamos, pois saberia dessa passagem
muito antes...”. Resolvi entrar e me esconder daqueles loucos, mas o lugar era
tão escuro que tive medo. E se encontrasse uma barata? Ou um fantasma? Seria
mais fácil enfrentar um nazista brasileiro do que um fantasma, pois com um
homem de verdade eu poderia lutar, mas contra um fantasma não havia nada que eu
pudesse fazer. Olhei o sol entrando por todas as janelas da casa,
atravessando as cortinas, e saí pela porta dos fundos, dando de cara com o
quintal onde estávamos quando tudo aconteceu. Quando olhei, lá estava o lago de
carpas que ele havia construído há alguns anos, as cadeiras de praia, um dia
ensolarado lindo e ele deitado em uma das cadeiras, com uma toalha no rosto, um
livro e um copo de refrigerante com gelo do lado. Não entendi o que estava
acontecendo e fiquei parada na porta, admirando a visão, mas sentindo minha
presença, ele levantou a toalha do rosto, olhou para mim e disse “Bom dia
linda, já acordou?”
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