Modernidade
Seria suficiente que eu tivesse
saúde para comer o que quero, para correr, para dormir, tomar sol ou ir ao
banheiro normalmente. Saúde para falar e ouvir corretamente, para respirar
sozinha, para não morrer lentamente.
Seria suficiente que eu tivesse
um pouco de comida para matar minha fome e água para saciar minha sede, que eu
tivesse um teto para me amparar e cobertores para me aquecer quando eu sentisse
frio.
Seria suficiente que eu tivesse
carinho das pessoas que me querem bem, uma grande família, educação próspera e um
trabalho digno. Que eu tivesse amigos de verdade pra sentar comigo numa calçada
e contar piadas.
No entanto, cansada de ver a
mesma cara no espelho, eu preciso de mais do que a simples saúde oferecida de
graça, mais do que o calor do sol, preciso me sentir muito mais do que um corpo
comum, de carne e osso como todo mundo, preciso ser bonita, ter a pele sedosa,
o cabelo brilhante, a barriga sequinha e a bunda empinada. Preciso de um
implante de silicone, de um abdome torneado, de bronze na pele, de roupas da
moda, de uma escova progressiva ou de unhas cor de rosa.
Eu preciso comer aquele sanduíche
do Mc Donalds que eu tanto desejei a semana toda, o pedaço da pizza, o açaí na
tijela ou o churrasco do fim do ano, o máximo possível para me fazer sentir
saciado e menos devorado por dentro (e eu ainda não quero engordar). Tenho que
beber não apenas um copo d’água para matar minha sede, mas um martini,
gatorade, vodka, suco de laranja, cerveja, tequila ou coca-cola...
Não preciso só de um teto para me
abrigar, para me proteger da chuva ou do sol, mas de portas, janelas e portões;
escadas, sacadas e sofás. Preciso de um liquidificador, TV por assinatura,
internet, telefone celular, relógio de parede, um vestido bonito de festa, o
videogame novo, uma bolsa para cada ocasião, o tablet, o carro do ano, sapatos
novos, um notebook, pulseiras e brincos, a camiseta do meu time... coisas sem
as quais eu não poderia ser feliz, e sobretudo, coisas sem as quais eu não poderia viver...
Será?
Será?
Deitada com a cabeça no travesseiro, sozinha no escuro, com os cabelos desgrenhados, o corpo cansado, ainda sinto falta do beijo delicado no meu rosto, do toque das mãos, da risada estridente da minha irmã, das tardes de sábado correndo na rua e pulando corda, do meu pai contando histórias que hoje em dia ele só conta quando acaba a energia. Saudade de quando ganhava pouco ou nenhum dinheiro e conseguia fazer com ele muito mais do que acreditava que conseguiria. Saudade dos amigos batendo palmas no portão, de ficar ouvindo "Love Songs" e escrever cartinhas e poemas num caderno velho, de quando tudo o que eu realmente precisava estava bem ali na minha cara e eu não precisava pesquisar nada no google porque eu iria aprender bem mais arduamente. Saudade de sonhar com o futuro. Saudade da aparência que a vida tinha de ser de verdade porque hoje, apesar das facilidades, tudo parece ser de mentira.
A lua, a praia, o mar.
Uma rua, passear.
Um doce, uma dança.
Um beijo ou goiabada com queijo?
Afinal, o que faz você feliz?
Chocolate, paixão
Dormir cedo, acordar tarde
Arroz com feijão, matar a saudade
O aumento, a casa, o carro que você sempre quis
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Dormir na rede, matar a sede
Ler ou viver um romance
O que faz você feliz?
Um lápis, uma letra, uma conversa boa
Um cafuné, café com leite, rir a toa
Um pássaro, um parque, um chafariz
Ou será o choro que te faz feliz?
A pausa para pensar
Sentir o vento
Esquecer o tempo
O céu
O sol
Um som
A pessoa
Um lugar.
Agora me diz, o que faz você feliz?
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