Hoje eu não vi a luz do sol

Não sei se toda garota passa por isso, na verdade nem sei se todas as pessoas já passaram por isso, porque cada pessoa tem seus sonhos e valores particulares demais para prevermos em um único julgamento ou pensamento.
Não falo pelos outros, só falo por mim, portanto: Eu sempre tive uma grande ansiedade e expectativa em relação a ser adulta e “independente” e esse assunto, pelo menos para mim, sempre esteve intimamente ligado à conquista do primeiro emprego e conseqüente carreira profissional. Para a maioria dos jovens que conheço atualmente, talvez esse marco esteja mais ligado ao vestibular.
A conquista do primeiro emprego, para mim, foi algo muito especial porque eu sempre tive uma auto-estima baixíssima, me considerando, muitas vezes, menos capaz do que eu realmente era para conseguir as coisas que eu sonhava. Quando resolvi fazer um curso técnico eu nem sabia direito o que queria ou como seria, de que forma isso impactaria no meu futuro e tal, mas passar no vestibulinho já foi um grande empurrão para eu ter a coragem de descobrir. Quando vejo as pessoas mais jovens do que eu, hoje em dia, percebo que a maioria, assim como eu naquela época, não faz nem idéia dos impactos profundos que as nossas ações e decisões profissionais podem ter em um futuro não muito distante. Tem coisas que só mesmo a experiência é capaz de elucidar.
Enfim, eu resolvi estudar uma coisa que não era nada familiar para mim e durante os primeiros meses me senti em desvantagem com relação aos outros alunos, já que a maioria deles tinha feito cursos de aprendizagem industrial e até mesmo outros cursos técnicos, enquanto eu nunca sequer tinha visto o motor de um carro de perto. Devo admitir também que ser mulher foi um empecilho a mais, não pelo preconceito que eu sabia que existe e sempre existirá em qualquer área e não apenas com a mulher, mas pelo fato de a condição da educação feminina não incentivar, na maioria das vezes, a liberdade de busca do conhecimento e a curiosidade a que os meninos são incentivados desde a infância. Em resumo, eu não tinha nem metade do conhecimento e visão que os rapazes tinham da área de mecânica, não sabia os símbolos básicos das válvulas no estudo de pneumática e hidráulica, não sabia o que era um simples solenóide nem um iodo, não tinha idéia do funcionamento de um compressor ou de um motor a combustão, que dirá de um torno CNC, um robô, CLP ou um sensor indutivo.
No entanto, ao final de um ano e meio de curso integral, para minha própria surpresa, o meu desempenho foi melhor do que o esperado e eu fiquei colocada entre os seis primeiros alunos da classe, que teriam a oportunidade de “escolher” onde poderiam fazer seu estágio supervisionado. Essa escolha está entre aspas porque era uma daquelas escolhas que vêm por livre e espontânea pressão, o que significa que em uma lista de mais de trinta empresas, havia uma que a escola já havia pré-selecionado para nós seis e que seria, no mínimo, deselegante, que escolhêssemos outra senão aquela, que mantinha financeiramente a escola. Optamos, portanto, pela tal empresa, sabendo que, apesar da imensa gama de oportunidades à nossa frente, estávamos fazendo uma ótima escolha.
Até hoje, consigo me lembrar de pouquíssimos momentos que me deixaram tão feliz e orgulhosa de mim quanto aquele momento. Estar entre aqueles seis alunos foi mais do que gratificante, foi uma grande vitória e me fez acreditar mais em mim. Eu estava disposta a fazer valer à pena a confiança que havia sido depositada pelo diretor daquela escola em nós, estava disposta a abrir as portas da empresa para outras meninas que poderiam ter a mesma chance que eu estava tendo, de trabalhar em uma organização tão conceituada. A sensação de alegria contagiante não demorou muito para dar lugar a outros tipos de sensações que eu nem imaginava que fariam parte da minha vida pelos próximos muitos anos...
Meu primeiro dia de trabalho como estagiária técnica em mecânica, em uma das metalúrgicas mais conceituadas do ABC, foi um longo 29 de junho, que começou às 5h20 da manhã, quando saí de casa, e terminou aproximadamente às 19h30 da noite, quando retornei. Um dos dias mais decepcionantes da minha vida. Não pela empresa em si, não naquele momento. Vou explicar.
Eu entrei pela “porta dos fundos” da companhia, o que significa que a empresa diferenciava a entrada dos chamados “administrativos” dos conhecidos como “peões”. Essa entrada dos fabris não era literalmente nos fundos, mas na lateral da empresa e era lá que estavam localizados os vestiários, onde tínhamos que deixar basicamente a nossa vida guardada em um armário de, no máximo, noventa centímetros quadrados. Lá deixávamos o que éramos de verdade, vestíamos a camisa da empresa, colocávamos as botas e todos os equipamentos de proteção, bem como o falso sorriso no rosto e sentávamos em bancos em um corredor que para mim parecia o corredor da morte, morte lenta de nosso ser, nosso livre-arbítrio, nossa liberdade de expressão e tantas outras coisas que passavam pela minha cabeça em meio aos freqüentes “O que diabos estou fazendo aqui?”e logo vinha o bombardeio de respostas...ganhar dinheiro, realizar sonhos, ajudar a família, "ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão..."


Quando o sinal de entrada tocava, íamos em fila indiana, passando por um detector de metais, todos com suas canecas nas mãos, porque a organização não disponibilizava coisas supérfluas como copos descartáveis ou guardanapos durante café ou almoço, logo, cada indivíduo, se quisesse beber água, suco ou leite, tinha que, logo de manhã, entrar na empresa com seu copo ou caneca. Ah, esqueci de mencionar que o vestiário era uma terra muito distante e inacessível durante todo o expediente, portanto, qualquer acessório como copo, escova de dentes ou uma simples maria-chiquinha, deveria ser levada com você no momento da entrada, pois em hipótese alguma, você seria autorizado a voltar lá em qualquer horário do dia que não fosse da entrada ou da saída. Vez ou outra acontecia de um guarda revistar alguém, amassando seu pacotinho de pão na chapa com a arrogância de quem jamais faria isso com um “administrativo” mesmo se ele adentrasse a empresa com sacolas e mais sacolas de feira.
A fábrica era linda e horrível ao mesmo tempo, linda porque eu adorava mecânica e ver o movimento das máquinas, atiçava minha curiosidade, e horrível por causa do barulho, sujeira e iluminação fraca. Demorei pra me acostumar com o calor, com os óculos de segurança e o capacete sempre escorregando na cara. Batemos o cartão para marcar o ponto de entrada.
O café da manhã era disponibilizado no chão da fábrica mesmo, para quem quisesse, e surpreendentemente, não vimos ninguém lavando as mãos antes de comer, embora houvesse tanta sujeira de graxa visível nas mãos de todo mundo. Nas pias que avistávamos havia o aviso “Somente para lavar copos”. Ainda assim, inocentes, fiéis a nossos hábitos de higiene, resolvemos ir lavar as mãos, levando uma bronca de leve na volta, porque era muita perda de tempo ir até o banheiro lavar as mãos toda vez que o café chegasse. Só tínhamos dez minutos para comer. Eu odiava margarina, até hoje não gosto, mas com fome, tentava comer, até descobrir que colocar o pão perto dos tanques de decapagem fazia a margarina derreter e daí veio a minha descoberta de que a margarina derretida no pão era mais suportável e depois, isso deu origem à minha paixão por pão na chapa (rs).
Os dias eram muito longos e nesse primeiro, em particular, parecia que eu tinha entrado na terra em que as horas paravam. O cheiro da fábrica, com o tempo, me causava enjôo, ficava na minha pele, na minha roupa e cabelos. Um cheiro de querosene misturado com cavaco e líquido refrigerante. Ali eu não tinha amigos, eu não gostava de ninguém, eu não via graça em nada, exceto no aprendizado que eu tanto esperava adquirir. Esse aprendizado demorou, mas veio com o passar dos anos.
O café da tarde também veio, da mesma forma que o da manhã. Naquela época, estagiário não tinha as regalias de hoje, trabalhávamos oito horas por dia e não seis. Não tínhamos direito a férias nem nada.
Ao final desse primeiro grande dia, eu estava morta de cansaço, com as pernas doendo de ficar em pé o dia inteiro, pois na indústria era proibido sentar. Com dor de cabeça da miscelânea de odores e um ar de desapontamento por não ter encontrado metade do que eu esperava. Não que eu esperasse um ambiente lindo e cheio de flores ou com ar condicionado, não era isso, na verdade nem era esse o principal motivo de decepção, mas a frieza das pessoas era o que eu não esperava, todas envolvidas com seus próprios problemas, todas nervosas, estressadas e na correria, dialogando, olhando, sem realmente ouvir ou ver ninguém.
Quando tocou o sinal de final do expediente eram 17h06 da tarde e eu descobri que nunca se deveria sair exatamente neste horário para não demonstrar falta de comprometimento (?). Bati o meu cartão de ponto para registrar a saída, percorri todo o caminho de volta ao vestiário, passei de novo pelo detector de metais que, dessa vez, não apitou nem uma vez, como ocorrera de manhã, e ao sair pela calçada para pegar o ônibus fretado qual não foi a minha surpresa ao perceber que o dia já tinha morrido e era noite. O que passou pela minha cabeça naquele momento eu nunca vou esquecer, e me fez perceber que ser adulta e independente como eu queria tinha lá seu preço bem alto: “Hoje eu não vi a luz do sol!”


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