Um doido no metrô
O cara desceu as escadas da
estação da linha verde do metrô de São Paulo chamando a atenção pelo jeito como
caminhava, gesticulava e falava em alto e bom tom, coisas aparentemente sem
sentido, como se estivesse falando com alguém ali do lado dele, na verdade,
falando não, parecia mais estar discutindo, brigando com alguém que, depois eu
percebi, só existia na sua imaginação. Era como se ele estivesse falando com
sua própria cabeça, com suas idéias, seus miolos, sei lá. Eu sempre ando com os
fones de ouvido, mas seus gritos eram tão altos e seu jeito tão estranho, que
eu consegui entender que o cara ou estava bêbado ou era doido varrido.
Parei em frente à porta
anti-suicídio e fiquei lá esperando o trem chegar, olhando, vez ou outra, meu
reflexo no vidro, ajeitando o cabelo, quando notei que ele parou bem atrás de
mim, dando chiliques que até assustavam. Fingi que não estava nem aí, e para
ser mais convincente, recoloquei os fones de ouvido até o trem chegar e abrir
as portas, nos permitindo entrar. Sentei-me no último banco do vagão, próxima a
uma senhora com cara de enjoada, e o doido ficou em pé, bem ao meu lado. Foi
engraçado perceber a reação das pessoas ao meu redor ao olharem para ele e,
enfim, entenderem que o cara não era “normal”. Idiota que sou, me senti até
importante por ter conhecido o cara antes daquelas pessoas e poder ficar
observando e julgando suas expressões diante do louco. Apostei comigo mesma que
a senhora com cara de enjoada não iria agüentar muito tempo até se retirar de
perto dele e foi exatamente isso que aconteceu, ela desembarcou duas estações
depois que ele entrou e eu fiquei me perguntando se aquela seria a estação
certa para ela descer ou se ela tomou essa decisão por medo do maluco falar
alguma coisa com ela, caso ela só mudasse de lugar no vagão, dando na cara que
estava com medo dele. Bem no assento do meu lado estava uma adolescente, também
com fones de ouvido, que começou a olhar para o doido como quem desejava que
ele fizesse alguma coisa extraordinariamente maluca pra ela postar no twitter ou contar para os amigos, aumentando
uma coisinha aqui e outra ali, como quem se acha a pessoa mais legal e normal
do mundo.
Eu fiquei ali, do lado dele,
tentando entender as coisas estranhas que ele dizia, tentando olhar disfarçadamente
para seu rosto. Vi que ele tinha um nariz muito grande, daqueles tipo “bico de
papagaio”, um tipo físico magérrimo, mas estava bem vestido, com sapatênis, uma
calça bege e uma camisa bem passada. Carregava uma embalagem de teclado de
computador e uma mochila preta que colocava às vezes no chão e às vezes nas
costas, repetindo essa ação ininterruptamente. Chutava o vagão de vez em
quando, repetindo frases até mesmo em outro idioma, que identifiquei como sendo
alemão, mas não tenho certeza absoluta.
Na maior parte do tempo, dentro
do trem, não conseguia entender 100% do que ele falava, porque sua voz
alternava momentos de volume muito baixo até gritos estridentes, que se uniram ao
barulho do trem e das pessoas conversando, mas quando comecei a entender,
desejei cada vez mais que ele ficasse ali do meu lado até a estação onde eu fosse
descer. Acontece que as coisas que ele dizia, embora misturadas a um
comportamento aparentemente bastante perturbado, faziam tanto sentido que eu
comecei a achar que era tão maluca quanto ele. Tentei me manter quieta,
prestando atenção nas coisas que ele berrava, até escutar frases como “cala a
boca sua mocréia!”, falando com a voz que dizia “próxima estação: Brigadeiro” (rsrs).
Me perguntei, por alguns minutos, o que teria feito esse cara ficar assim, o
que aconteceu para que sua cabeça pirasse desse jeito, a ponto de fazer ele
parecer não se encaixar mais nessa sociedade. Pensei se esse tipo de coisa não
poderia acontecer com qualquer um de nós, principalmente comigo, que estava
ali, até mesmo vendo sentido em muitas de suas falas. Pensei se as outras
pessoas dentro daquele trem não poderiam sentir o mesmo que eu, pois tirando a
adolescente com cara de esperta e a senhora que havia ido embora, as outras
pessoas pareciam não apenas curiosas, mas interessadas no que ele dizia. Uma
mulher sentada à minha frente, com sua filha pequena, olhava pra ele como quem
desejava ajudar aquele homem. Não era um olhar de piedade nem de aversão, mas
de reflexão.
Quando ele soltou, no meio do
burburinho que causava consigo mesmo, “são todos sangue-sugas, todos, todos,
todos! As lojas, os bancos... prefiro a morte!”, eu achei que talvez o cara
fosse, há algum tempo atrás (quanto tempo eu não sei), uma pessoa comum ou “normal”
como dizem, como eu ou você. Uma pessoa que não falava, mas enxergava o que
acontece ao redor com uma consciência quase cruel, tão cruel que talvez pudesse
ter sido demais para ele. Alguém que não conseguisse se conformar com os preços
altos, os salários baixos, o abuso de poder, a hipocrisia, a injustiça e o
descaso com que nossa vida civilizada muitas vezes nos trata, sem que possamos
fazer nada para mudar a situação, como naquele filme “Um dia de fúria”, em que
o personagem principal simplesmente “pira” e sai com uma arma atirando em todo
mundo por motivos aparentemente banais, mas que às vezes nos deixam em vias de
ficar louco, mas o personagem do filme nem é, entende? Quem nunca sentiu vontade de “rodar a baiana” em momentos de
extrema insatisfação? Quem nunca se identificou com o personagem do filme? Quem
nunca imaginou-se fazendo o que ele fez?
O homem louco deixou o metrô
antes de mim, mas não consegui entender se ele sabia exatamente para onde
estava indo. Logo que ele saiu do vagão, a adolescente do meu lado soltou uma
gargalhada estridente e sarcástica, como quem se achava muito melhor do que
ele. Eu só conseguia pensar que aquele doido poderia ser eu ou você, quem sabe
um filho seu, mas talvez com uma sensibilidade que deixou-o no limite da insanidade.
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