Um momento de lucidez
Sabe um daqueles dias em que a gente acorda cansada? Mas não é um simples cansaço físico, é aquele tipo de esgotamento que surge de muitos e muitos dias e encontra-se acumulado, enclausurado na alma. Cansaço oriundo dos dias todos iguais e exageradamente árduos, da saudade freqüente e sem fim de todos os que amo, dos sonhos perdidos nos detalhes menos importantes do dia-a-dia, da inocência esparramada e destruída no jardim ao lado de casa, das viagens de três, às vezes quatro horas do trabalho até em casa, da dor de cabeça que não passa. Das relações de consumo, dos preços absurdos, dos juros abusivos, dos tapas na cara quando precisamos de um atendimento digno, da comida cara e mal feita, das latas de refrigerante e bitucas de cigarro jogadas pelas janelas dos carros, do cheiro do rio que transformou-se em esgoto, de gente sem escrúpulo e sem educação, de pedir “por favor” e nunca ouvir um “com licença” ou “obrigado”, da consciência do errado e a óbvia apatia diante disso, do desemprego, do desamparo, da indiferença, da compreensão do que é preciso ser feito e ainda assim não é feito, da falta de lazer, falta de afeto, falta de amor, falta de paciência. Do jogo que se joga com a vida das pessoas, dessa mania de achar natural ser maltratada. Cansada de remar contra a maré, de matar um dragão por dia, quase sempre em vão, de tentar ser alguém diferente, melhor e sentir tanta força oposta a isso, de me sentir tão pequena nessa terra de gente grande e sem valor. Cansada do julgamento imoral de quem nem sabe o que diz, das coisas fora do lugar, de ser cobrada por tudo e não ter direito a nada. Cansada de ser a andorinha sozinha no verão. Ouça esse meu pequeno e inútil desabafo, mesmo que redundante, entalado na garganta da visão de um mundo do avesso. Eu quero mais do que isso! Sim, eu quero sempre mais! Quero um abrigo, um amparo, um amigo, “quero ter alguém com quem conversar, alguém que depois não use o que eu disse contra mim”... quero uma condição de vida melhor, quero ver o cachorro sendo afagado na janela e não ver o meu cão morto no jardim do vizinho, quero um “sinto muito” sincero, de alguém que sente de verdade, quero a emoção de ser eu mesma de vez em quando, quero poder acreditar nas palavras que eu ouço, sem medo de ser enganada, trapaceada, passada para trás. Eu quero ter tempo para dormir na minha cama e não dentro do ônibus, e eu quero dormir em paz. Quero tomar banho às quatro da tarde e não da manhã, e poder ver o sol entrando pela minha janela. Quero ter o direito de ter direitos, de ter defeitos, de fazer o que for preciso, de dar o melhor de mim, sem achar sempre que fiz muito pouco. Quero sentir que não sou culpada de tudo porque realmente não sou. Quero minha pulseira de prata de volta porque eu gosto dela, quero dançar no meio da minha cozinha, curtir outra vez de verdade o abrigo dos braços daquele que me liberta sem pensar e me preocupar a cada minuto com os erros cometidos. Quero me cobrar menos, me amar mais, me deixar ao menos um dia, expressar o que realmente sinto, sem me preocupar com o que os outros vão pensar, com o que vão dizer, eles pensarão e dirão coisas injustas e insensatas seja eu certa ou errada.
Eu quero sorrir quando me der vontade e seguir sem essas algemas invisíveis que aprisionam a minha alma, sem me sentir refém de uma situação. Eu quero uma trégua, um descanso, não pensar em nada. Não me sentir oca, vazia, inútil. Não quero mais me sentir assim, engolida, perseguida, cansada de encontrar “cada vez mais gente e menos pessoas” e ver que isso é cada dia mais natural. Não é natural! Eu quero mais, muito mais do que essa vida vazia, do que palavras ao vento, do que falta de tempo.
“Acordo, não tenho trabalho, procuro trabalho, quero trabalhar
O cara me pede o diploma, não tenho diploma, não pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado, que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo um emprego, começa o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego, mas onde que eu chego se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede, não tenho dinheiro pra dar!
Escola! Esmola! Favela, cadeia! Sem terra, enterra!
O cara me pede o diploma, não tenho diploma, não pude estudar
E querem que eu seja educado, que eu ande arrumado, que eu saiba falar
Aquilo que o mundo me pede não é o que o mundo me dá
Consigo um emprego, começa o emprego, me mato de tanto ralar
Acordo bem cedo, não tenho sossego nem tempo pra raciocinar
Não peço arrego, mas onde que eu chego se eu fico no mesmo lugar?
Brinquedo que o filho me pede, não tenho dinheiro pra dar!
Escola! Esmola! Favela, cadeia! Sem terra, enterra!
Sem renda, se renda! Não! Não!!”
(Até quando? - Gabriel o Pensador)
“Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...
Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...”
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...”
“Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão”
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão”
Ufa! Estou sem fôlego! Cidiane, suas palavras são como navalhas a retalhar os sentimentos, como se procurassem escancarar aquilo tudo que nos faz iguais... Somos todos peregrinos nos (des)caminhos da vida, aprendendo e querendo muito além da mediocridade que nos apresentam... Mas não é simples mudar isso, já que mesmo os que afirmam que pensam como nós, ao nos ver romper as amarras, nos chamarão de heróis ou loucos, mas não terão a coragem de juntarem-se a nós, para que a caminhada não seja solitária.
ResponderExcluirE o pior é que não podemos tecer críticas a esse respeito, porque muitas vezes já agimos exatamente assim... Como no caminho da iluminação, seguimos solitários, embora com muitos ao nosso redor, sabendo que para entender o mundo precisamos antes nos entender verdadeiramente.