Mortos ou vivos?

Se você assiste The Walking Dead, certamente conseguirá visualizar melhor a história que se segue, no entanto, não deixará de entendê-la por não ter visto a série.
Apesar do cenário cinza que logo imaginamos naquele fim de mundo em que pessoas transformam-se em mortos-vivos horripilantes, a minha história começa com um céu tão azul e um sol tão brilhante quanto os que iluminam o nosso país tropical durante o verão. O palco é uma praia tão bela e paradisíaca quanto a ilha de Lost e onde me encontro é justamente uma ilha deserta, na verdade, não tão deserta assim...
Eu olho ao redor e só consigo ver um grande volume de água com a terra vista muito de longe, os coqueiros e a mata típica da região, a brisa soprando meus cabelos e uma tripulação pronta para dar um comando que eu não sei qual é. Pergunto ao capitão, parecido com aquele do Titanic:
- Senhor, o que estamos fazendo aqui, em alto mar? E o que há naquela ilha para onde estamos indo?
E ele me responde, secamente:
- Não estamos indo em direção àquele lugar, pelo menos não enquanto não tomarmos o nosso remédio.
- Que remédio?
Pergunto eu, com um pouco de receio da resposta, já que ele não parecia feliz com o que tinha a me responder.
Logo, aparece uma outra pessoa e explica:
- Você precisa tomar este remédio, em um único gole, para que possamos voltar à ilha sem sermos percebidos. Ele fará efeito apenas por algumas horas em que poderemos caminhar normalmente entre eles.
Antes que eu fizesse qualquer outra pergunta, diante do ar hostil e extremamente apreensivo que estava sentindo ali, o capitão berrou:
- Beba!!!
Engoli de uma vez o remédio, que era uma das coisas mais horríveis que eu já havia experimentado em minha vida. Cheirava a suor de gente grande e tinha gosto de carne podre, me fazendo quase vomitar. Por um momento pensei que fosse passar muito mal porque meu estômago começou a doer demais, como nunca havia doído antes e, de tanta dor, comecei a senti-lo cada vez mais quente, parecendo que ia derreter. Sem conseguir evitar, levantei a camisa e percebi que minha barriga estava se mexendo muito, como se minhas entranhas estivessem vivas e adquirissem vontade própria. Minha pele começou a enrijecer-se e tornou-se pálida, passando para roxa em questão de segundos. Minha cabeça parecia não funcionar mais direito, assim como a coordenação motora, sentia como se não fosse mais dona de meus movimentos e pensamentos, como se tivesse perdido a capacidade de decidir por mim mesma para onde olhar ou o que tocar á minha frente. Sentia minhas mandíbulas travarem, como na história das formigas-zumbis, que têm seu comportamento alterado e os sentidos totalmente afetados por um fungo que faz com que elas vagueiem pela colônia sem controle de suas próprias ações.
Mesmo ainda com dificuldade em controlar meu pescoço e minha visão, que havia se tornado turva e branca demais, vi minhas mãos tentando tocar o peito do capitão, que parecia estar a mais ou menos um metro de distância, quando de repente, pareceu distanciar-se para mais de dez metros de mim. Foi aí que percebi que todos os tripulantes e passageiros daquele navio tinham se transformado em mortos-vivos, inclusive eu! O barco já estava próximo à ilha quando os zumbis começaram a pular na água, enquanto os outros, que habitavam a ilha, se aproximavam, misturando-se todos, sem que houvesse, mais tarde, distinção entre quem estava no barco e quem estava na ilha, ou seja, entre os zumbis genuínos e os “temporários”.
Estar entre eles e fazer parte deles era uma sensação tão estranha que parecia transbordar em meus poros, não conseguia mais sentir o cheiro ruim e nem medo nenhum, como se eu estivesse completamente anestesiada e alguém comandasse totalmente as minhas ações. A aparência não era mais assustadora e não me trazia sentimento algum. Era uma sensação de não existir, de ser um espectador que, ao mesmo, tempo participasse do elenco. Como estar na pele de um personagem de um jogo de videogame, conseguindo, indiretamente, interagir com o ambiente e os outros personagens, sem, entretanto, fazer parte, efetivamente, do jogo.
Sem sentir direito a areia sob meus pés, eu mal conseguia me manter em pé, não tinha mais nenhuma noção de equilíbrio motor, mas ao mesmo tempo sabia que não ia cair. Eu não entendia porque estava ali, nem qual era a minha missão ou qual o objetivo das pessoas no barco. Só ficava imaginando se aquilo seria mesmo temporário e se eu queria mesmo que fosse, pois não conseguia desejar “voltar ao normal” porque não imaginava uma vida no meio de tanta morte evidente. Ninguém me explicou direito o que estava acontecendo e, subitamente, tive que entrar no meio da multidão e fazer as coisas acontecerem para mim, mesmo que sentindo-me um fantoche da situação. As regras já estavam ali há não sei quanto tempo e eu me senti caindo de um trem em movimento. Isenta de conhecimento e consciência, sem ter nem mesmo condições físicas, eu me vi totalmente impotente, mas aquele céu azul e aquele sol continuavam a brilhar, do mesmo jeito de sempre, como se o mundo não estivessem nem aí para os pobres mortos-vivos espalhados pela Terra. O contraste entre o paraíso daquela ilha e a morbidez dos zumbis perambulando famintos, junto com a angústia de existir sem estar vivo e a consciência inconsciente, me fizeram entender que eu só podia estar em um purgatório, de onde eu não tinha como saber se poderia sair algum dia. Eu verdadeiramente não sentia mais nada.

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