Não se nasce mulher, torna-se mulher
Há um principio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher. (Pitágoras)
A primeira vez que assisti ao vídeo de um parto me senti a mais estranha das criaturas que habitam o planeta e a reflexão sobre quem eu era levou muito mais tempo e paciência do que eu poderia imaginar. O inquietante pensamento sobre o assunto passou pelas reprimendas da infância, a puberdade e a menstruação, as disputas dos direitos sexuais entre os gêneros, as diferenças de valores da instituição-casamento, a maternidade, o preconceito e a menopausa. E não pararam até conhecer, mais recentemente, O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir, e a cansativa percepção de que “a pior desgraça quando se é mulher é, no fundo, não compreender que sê-lo é uma desgraça”. O tema é realmente irritante, mas se tiver paciência ou interesse, vamos lá...
Tudo tem dois lados. É bom lembrar isso sempre porque ser mulher, principalmente, tem no mínimo dois, mas comumente mais de mil lados.
Durante quase toda a vida a mulher é tratada de forma diferentemente equivocada, pois não é o gênero que faz dela tão delicadamente menosprezada quanto qualquer outra “classe” considerada menor ou menos importante pelo homem, é a forma como ela é concebida na própria civilização. Comparada com outras fêmeas presentes no planeta, a fêmea humana é a única considerada inferior pela própria sociedade em que vive. Resumida em seu sexo, mesmo em tempos modernos como hoje, uma mulher admirada no ápice de seu sucesso, em qualquer área de atuação profissional, seja na música, design, teatro, moda, culinária, fotografia, jornalismo, política ou qualquer profissão que a faça presente na mídia, é imediatamente convidada a posar nua, e nesse momento é como se o mundo civilizado tentasse colocá-la no lugar que acredita que ela realmente ocupa na sociedade, independentemente da época.
Quando crianças, meninos e meninas, embora semelhantes em sua fase, são criados e educados pelos pais de forma diferente. Os meninos geralmente passam horas jogando videogame ou futebol, vendo filmes e desenhos, desenvolvendo o lado intelectual ou despendendo tempo consigo de alguma forma, enquanto a menina desde cedo já é educada de forma a saber separar parte de seu dia e do seu tempo para limpar a casa ou lavar a louça, entre outras coisas, como forma de ajudar a mãe. Desde pequena ela é ensinada a se conter e se privar de muitas coisas, é educada para ser subserviente e embora estejamos em um período em que, supostamente, a mulher alcança total emancipação, o fato é que toda a definição do homem em relação ao “eterno feminino” está embutido no seio da sociedade e trata-se não apenas de uma situação ou de um fato isolado ou independente, mas de um sentimento e um conceito impregnado na humanidade, natural e inevitavelmente machista, desde Aristóteles, que considerava a mulher como um servo para o homem. De lá para cá, muita coisa mudou, obviamente, nos dias atuais a mulher possui o direito de votar, dirigir, trabalhar, assumir relacionamento aberto e muitas outras coisas que poderiam ocupar metade desse blog, mas a verdade é que o seu papel ainda é o mesmo desde que o mundo é mundo, se você observar nas entrelinhas da visão retrógrada de muita gente. Isso está descrito um pouco no desrespeito com que são tratadas nas piadas infames durante conversas masculinas, nas páginas de revistas impróprias para menores, nas promoções ou contratações pelas quais deixam de concorrer injustamente, entre muitas outras coisas. Muitos seres do sexo feminino não concordariam, não aceitariam, não leriam ou nem sequer compreenderiam do que estou tentando falar porque certamente não compreendem ainda quem realmente são, não observaram atentamente ao redor ou simplesmente tratam-se daquela maioria (infelizmente) que fazem valer o carimbo de incapacidade que o preconceito nos mostra. A verdade é que a mulher, em geral, ainda ganha duas vezes menos para trabalhar o dobro do que um homem que atua em um mesmo segmento e profissão; ainda tem que provar muita competência para que as pessoas não digam que foi promovida porque dormiu com o chefe; ainda tem sua dignidade questionada com base em idéias predominantemente masculinas porque é julgada de acordo com o pensamento de um mundo machista.
No fundo, a mulher ainda é um servo em sua condição social, o Outro e não o Um, independentemente da época, até para aquele homem raro, até mesmo aquela mulher rara, todas ainda são colocadas no patamar de um servo, vistas pelo termo pejorativo de “fêmea” e como fêmeas que, evidentemente, são.
NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um ‘Outro’. (Simone de Beauvoir)
Metade vítimas, metade cúmplices, como todo mundo.
J . - P . SARTRE
Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos, despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo; através de jogos, esportes, lutas, desafios, provas, encontra um emprego equilibrado para suas forças; ao mesmo tempo conhece as lições severas da violência; aprende a receber pancada, a desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da primeira infância. Empreende, inventa, ousa. Sem dúvida, experimenta-se também como "para outrem", põe em questão sua virilidade, do que decorrem, em relação aos adultos e a outros colegas, muitos problemas. Porém, o mais importante é que não há oposição fundamental entre a preocupação dessa figura objetiva, que é sua, e sua vontade de se afirmar em projetos concretos. É fazendo que ele se faz ser, num só movimento. Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu "ser-outro"; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino.
(Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo: A experiência vivida, 1967)
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