Leito 501

Seguia de forma tão espontânea e achava, logo no início, que não era normal ficar tão chateada com coisas que os outros achavam pequenas demais, embora por dentro lamentasse profundamente que tudo fosse feito de um jeito tão injusto, porque a base de sua educação sempre foi a honestidade, acima de qualquer coisa. Naquele tempo, não sabia que esta inquietação, essa fragilidade, que esta frustração era parte intrínseca de seu ser e não apenas uma questão de imaturidade.
Buscando seus caminhos, logo deparou-se com a imoralidade escondida embaixo dos tapetes, sob os risinhos simpáticos presentes nas avaliações externas, nas conversas das “autoridades”, nas feiras e exposições, nas reuniões. Muitos diziam "tratar-se de Brasil", mas acreditava que este comportamento não é e nunca foi exclusivo, assim como também não deixa de ter suas exceções.
Mas a verdade é que, naquela época, poucas pessoas realmente se importavam com a ética das coisas ou sequer sabiam o quê isto significava, e mesmo muito jovem, já se perguntava até onde as pessoas seriam capazes de desistir de si mesmos e escolher um emprego a sua própria dignidade.
Em um dia comum, um rapaz com seus trinta e poucos anos saiu de casa, deixando um filho recém nascido com a esposa, e foi trabalhar. Apenas mais um dia na vida de qualquer um, assim como ele, com a diferença que ele não sabia que aquele seria o ultimo dia de sua vida. Um descuido, uma pressa, uma negligência fez com que não voltasse para casa nunca mais, e a multidão ao redor não fez um minuto de silêncio por ele. Ele não era um homem conhecido, nunca havia trocado uma palavra com ele, ainda assim todos viram o seu sangue espalhado pelo chão, onde a maioria não tinha humanidade para fazer um segundo de silêncio, pois o trabalho não podia parar, as pessoas tinham que ganhar seu pão de cada dia, mesmo após o acidente que poderia muito bem ter ocorrido a qualquer um por ali, ao acaso....
Com  o altruísmo à flor da pele, como sempre, a menina desabou a chorar o dia inteiro escondida, pelos cantos, no banheiro. Sabia que havia entrado em um mundo desumano como jamais imaginara que fosse, e sabia que quereria fugir dali o mais rápido possível, a qualquer custo, pois nenhum dinheiro no mundo pagaria sua paz, e a sua dignidade não estava à venda.
Na humilde mentalidade de quem mantêm a esperança de um mundo melhor, embora soubesse de todas as falhas, imperfeições e limitações de sua profissão, imaginava silenciosamente que encontraria um lugar ao sol, mesmo anos após esta ocorrência dramática relatada, mas a verdade é que viria a descobrir, anos depois, que isso não seria possível, pois quanto mais se sobe na cadeia hierárquica, mais deficiências somos capazes de enxergar, tendo responsabilidades com relação a vida de outras pessoas, porém, muitas vezes sem autonomia para torná-las melhor sob nenhum aspecto.
Quando ela entrou, pela primeira vez na vida, em uma sala de UTI, foi para visitar sua melhor amiga, que estava mergulhada em um sono tão lindo, tranquilo, com os cabelos compridos e cacheados espalhados, misturando-se à cor branca do lençol que a envolvia. Parecia um sono de criança e por alguns segundos desejou não acordá-la, como não se acorda um bebê, principalmente por imaginar a avalanche de coisas pelas quais ela havia passado nos últimos dias e que, certamente, estava merecendo um descanso. Naquele momento desejou apenas vê-la dormir, entretanto, no despertar daquele sono leve foi possível perceber os fios e cabos colados em seu peito, ligados a um monitor multiparâmetros que apresentava seus batimentos cardíacos, valores de pressão sanguínea e concentração de oxigênio, entre outros dados. O monitor marcava 114 batimentos por minuto, mas ela não tinha certeza de que essa informação estava perfeitamente correta. E se fossem 112, 100 ou 89 bpm? Que diferença faria na vida dela? Que diferença faria na vida daquele hospital? E na vida da paciente? Então percebeu que, infelizmente, não podia se sentir segura sobre nada, e indagou para si mesma: então quem poderia? A enfermeira? O engenheiro clínico? O diretor? Ela nunca iria saber a verdade sobre as coisas e essas pessoas não teriam nenhum interesse maior do que a quantidade de reconhecimento em seus bolsos, teriam seus olhos voluntariamente e convenientemente vendados, pois em caso de “desvios”, o problema seria de algum outro responsável, já havia se acostumado com as injustiças do mundo...
Deparou-se então com o fato de que, mesmo não sabendo da verdade, continuava na posição de vítima de um sistema mal elaborado, sendo levada pela correnteza, assinando documentos todos os dias, sem ter nenhuma certeza da fidelidade daqueles valores, daquelas informações que serviriam de parâmetro para determinar-se a dosagem de drogas a serem injetadas naquelas pessoas, a frequência da terapia, o momento certo da saída para o quarto... os erros de medição poderiam ser mínimos, mas sendo maiores do que os limites especificados, sua participação seria inegável, embora indireta e incerta, imperdoável, pelo menos para sua frágil consciência. Não poderia mais ser tão conivente com isto, pois a vida é curta demais para não fazermos a coisa certa...

Aquele momento no hospital deixou claro tudo o que era preciso saber, tudo o que já estava ali, diante de seus olhos e insistia não sair de sua cabeça, e então, finalmente ela foi capaz de compreender que era pequena demais para mudar um mundo inteiro se este mundo não estivesse determinado a mudar para melhor, mas sim em continuar fazendo tudo errado. 


Seu trabalho vai preencher uma parte grande da sua vida, e a única maneira de ficar realmente satisfeito é fazer o que você acredita ser um ótimo trabalho. E a única maneira de fazer um excelente trabalho é amar o que você faz.Se você ainda não encontrou o que é, continue procurando. Não sossegue. Assim como todos os assuntos do coração, você saberá quando encontrar. E, como em qualquer grande relacionamento, só fica melhor e melhor à medida que os anos passam. Então continue procurando até você achar. Não sossegue. (Steve Jobs)

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