Seria cômico se não fosse trágico

Ontem finalmente eu vi o filme que provavelmente foi o melhor que eu assisti neste ano de 2019, mas tenho certeza de que será bastante desafiador explicar o porquê aqui nestas poucas linhas.

Para começar o filme é pesado, tenso e dramático do início ao fim, e talvez por esse motivo ele rapidamente tenha me cativado...nos primeiros cinco minutos eu sabia que sim, eu sei que sou estranha porque a mensagem claramente incomoda, mas eu amo a verdade embutida nesse filme e a verdade quase sempre incomoda. O Coringa foi surpreendentemente melhor do que eu jamais imaginei, talvez porque, como muitas outras pessoas, eu esperava encontrar apenas o super inimigo do Batman na tela... mas em vez disso eu me deparei com uma obra de arte digna de muita atenção e reflexão. Acredito que a palavra mais adequada para descrever a sensação de ver este filme é atração, pois o que senti durante todo o tempo em que estive naquela sala de cinema foi uma admiração à beleza profundamente embutida na tradução das cenas bem pensadas, que em resumo, explicam um pouco da beleza e profundeza da vida real, na minha humilde opinião. A mensagem é simples e clara, porém complexa ao mesmo tempo: nem tudo na vida é tão belo como as vezes queremos acreditar que é, nem sempre teremos a opção de sorrir honestamente se nossa alma estiver em pedaços, nem sempre o mundo irá nos tratar como esperamos ou merecemos ser tratados... e se não tivermos uma mínima estabilidade emocional, uma estrutura familiar sólida ou uma força interior sobre-humana, podemos naturalmente e literalmente sucumbir à insanidade mental. E eu não me refiro a quase charmosa loucura dos contos de fadas, mas a doenças absurdamente tristes e destrutivas.

Essa obra prima que eu vi ontem à noite sem pestanejar mostra, de forma quase tranquila e fúnebre, a influência de uma sociedade deficitária no subdesenvolvimento das pessoas, especialmente daquelas menos favorecidas e lamentavelmente mais frágeis, que se prendem à esperança desesperada de encaixarem-se de alguma forma nesse mundo "real", essas pessoas que mais precisam de ajuda e ironicamente encontram o desalento em cada esquina que cruzam, pois a sociedade que supostamente deveria “conserta-las” pode ser o dedo no gatilho daquela pequena arma que faltava para danifica-las ainda mais...“a loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrão”...

Outra reflexão importante que este filme impulsiona fortemente é sobre a falsa impressão de felicidade que ronda nossa sociedade, sobretudo a civilização atual. Todos os sorrisos e gargalhadas que, mais frequentemente do que imaginamos, escondem dores, agonias, sofrimentos inimagináveis. Quantas pessoas ao nosso redor sorriem desbravadamente todo dia enquanto choram por dentro? Quantas vezes você mesmo não deu risada com os amigos ou contou piadas e histórias engraçadas na mesa do bar para esquecer seus problemas mais profundos? Quantos “jokers” você não conhece no seu trabalho, família ou escola?

Principalmente em nosso país, tão conhecido no exterior como um país de gente alegre, somos condicionados a rir e fazer piadas sobre tudo: a nossa política corrupta, a economia desleal, as leis defasadas, os preços amargos, a podridão do preconceito, a lentidão do sistema público.... mesmo que todas essas coisas nos enlouqueçam internamente, estamos sempre condicionados a encarar tudo com graça, porque talvez seja mais fácil de lidar com a realidade. Porque no fundo dói, e geralmente dói muito. Mas a gente bota um sorriso no rosto e finge que está tudo bem, faz de conta que é engraçado e segue em frente.

As gargalhadas do Arthur ecoam pela sala como uma metáfora para esse contraditório cenário real que seu cérebro gostaria de bloquear, ele ri muito e descontroladamente, quanto mais dói mais alta é a risada, contradizendo o sentimento dilacerante que o corroe por dentro. Essa é sua condição mental, e ela me parece uma versão fantástica e exagerada do que somos todos na realidade. Talvez uma grande piada.

A vida é realmente tensa para o personagem, que sente-se sozinho, excluído, vilipendiado, descartável, injustiçado e humilhado. Frequentemente! 
Saio do cinema e me pergunto incansavelmente se mesmo em escala obviamente menor, quantos de nós já não se sentiu assim pelo menos uma vez na vida...? Quantos de nós já não teve vontade de botar uma máscara na cara e sair por aí fingindo se feliz só pra evitar o cansaço de tentar explicar porquê não, quantos de nós já não se sentiu feito de palhaço com seus direitos básicos sendo abertamente deflagrados, quanos de nós já não se sentiu no limite?... não consigo evitar de pensar como seria sentir-se assim todo santo dia... não parece tão difícil enlouquecer de verdade...

Mas um dia o nosso querido personagem principal, como qualquer cidadão "comum", descobriu uma forma de ser notado, um jeito de sentir-se razoavelmente livre da dor com a qual inevitavelmente acostumou-se. Essa válvula de escape que, em infinita menor intensidade para outras pessoas consideradas "normais", poderia ser um vício como jogar, beber, fumar ou qualquer outra forma de alívio do estresse, foi para ele o ato de matar violentamente pessoas, eliminar o desconforto iminente, abraçar o caos da cidade. Foi a terapia de que tanto precisava, e que de certa forma, lhe trouxe a “paz” de sentir-se “alguém” neste mundo insano.

Depois disso ele dança. Sente-se finalmente vivo. Fazer o que? É a vida...


"Why So Serious?"

Comentários

Postagens mais visitadas